Roteiro do Senhor de Matosinhos


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segunda-feira

Lenda do Senhor de Matosinhos

Esta é a lenda que melhor explica a origem e popularidade da Imagem do Bom Jesus de Matosinhos. Crucifixo esse que ficou associada a diversos milagres e que mais terá sido sacrificado em detrimento de outros mais modernos/belos. Tal narrativa data do século XVIII, contudo já vários autores se tinham referido a este episódio lendário.
 “Tudo começa com Nicodemos, personagem bíblica citada no Evangelho de João (3:1-21; 7: 45-52; 19: 38-42). Para a nossa lenda interessa o facto de ter sido ele quem, com a ajuda de José de Arimateia, retirou Cristo da cruz e o depositou no sepulcro, depois de lhe envolver o corpo com ligaduras de linho, perfumadas de mirra e aloés (Evangelho de João 19: 39-40, e também Evangelho de Marcos 15: 42-47).


De resto, e destes momentos finais da vida de Cristo, José de Arimateia e Nicodemos guardariam duas das mais preciosas relíquias do cristianismo, perseguidas durante séculos: o Santo Graal (o cálice da última Ceia) ficou na posse do primeiro, enquanto o segundo guardou o Santo Sudário, o mais famoso retalho de tecido da História: aquele que envolveu o corpo de Cristo após a crucificação e no qual ficou reproduzido todo o seu corpo, incluindo o rosto.
Profundamente impressionado com os acontecimentos de que fora testemunha, e porque era bastante dotado para o trabalho em madeira, Nicodemos resolve então esculpir diversas imagens de Cristo crucificado, nas quais, com a ajuda da imagem perpetuada no sudário, reproduz com cuidado as feições de Jesus.” (CLETO, 2010)
«A primeira imagem não satisfez talvez o artista. Não lhe sentia o calor d'aquelle sangue compassivo, o sopro, o fremito d'aquella palavra que jorrava parábolas e perdões!
Nicodemos, paciente como Da Vinci ao teimar na sua prodigiosa Ceia, abandonou a imagem e pela herdade errou, deslembradas horas, até acertar com um tronco que lhe desse a impressão da elevação do Mártir: tomou o sudário, guardado para divino agravo d'aquelle Amor, embebeu o olhar no olhar do Morto, ensimesmou-se, evocou traços, expressões, reviu com a memória visual a cor das madeixas desfallecidas e tornou a trabalhar por erguer o Apostolo, tal qual o vira e admirara na grandeza do seu desdem, cego para a Dor, surdo para o Escárnio.
Segunda vez o estatuário desesperou de emprestar à inércia da inexpressiva matéria a magestade da vida na hora da morte. E terceira vez tentou, teimou n'essa anciã da perfeição que só os artistas conscienciosos e grandes conhecem até o extremo da tortura em carne viva...» (Leitão, 1907, citado por CLETO, 2007).
Estas imagens não permanecerão, no entanto, muito tempo na posse do seu escultor. Isto porque eram, afinal, comprometedores indícios face às perseguições de que os cristãos são então vítimas por parte dos judeus e romanos. Ou então, noutras versões da lenda, pelo facto dos primeiros cristãos condenarem a representação e adoração de imagens, por verem nelas uma sobrevivência dos cultos e religiões pagãs. Por um motivo ou por outro, a verdade (lendária, não nos esqueçamos) é que Nicodemos acaba por lançar as suas imagens ao mar Mediterrâneo, na longínqua Palestina. (…) Na cidade de Jope, precisam alguns.
Quanto ao número de imagens “(…) Uma corrente, apresentada nomeadamente na maioria das versões que vêm sendo escritas desde 1623, indica terem sido cinco os crucifixos esculpidos e lançados às águas do Mediterrâneo – tantos quantas as chagas de Cristo. Estas imagens teriam posteriormente sulcado as vagas e aportado a distintos lugares onde, hoje, são veneradas: Berito, na Síria (a actual Beirute, no Líbano); Luca, em Itália; Burgos, em Espanha; Orense, na Galiza; e, obviamente, Matosinhos.
Para outros autores, no entanto, o número de imagens esculpidas é indefinido. Assim, recorrendo novamente à narrativa de Joaquim Leitão, citado por CLETO, «Nicodemos ajoelhou com ella e (...) assim deitou a sua Imagem no seio revolto do mar. Primeiro uma, depois outra e outra, tantas quantas as árvores que na granja havia. "A herdade despovoara-se de sombra: o mundo povoava-se de fé.»
Embora variando no número de imagens trabalhadas por Nicodemos, todas as versões da lenda voltam a estar de acordo quando se trata de referir que, de todas elas, a mais bela e perfeita e a que melhor reproduzia a efígie de Cristo foi a que, depois de vogado o Mediterrâneo, cruzado o estreito de Gibraltar, sulcado o Atlântico junto às nossas costas, acabou por aportar na praia do Espinheiro, junto ao lugar de... Matosinhos. (…) No dia 3 de Maio do ano 124, dia do Espírito Santo ou de Pentecostes, data móvel do calendário religioso escolhida, de resto, e ainda hoje, para as celebrações, romaria e festas do Senhor de Matosinhos.
Recolhida a imagem na praia pela população (precoce e supostamente já cristã graças aos milagres ocorridos no ano 44 e narrados na lenda anterior), constatou-se, contudo, que lhe faltava um dos braços. E em vão se tenta resolver o problema. Na praia não se encontrou o membro em falta e, por muitos braços que se tenham mandado fazer aos melhores artífices e carpinteiros, nenhum encaixava de forma perfeita no ombro amputado ou, pura e simplesmente, não era similar ao do lado oposto. E assim, resignados, deixam ficar a imagem resguardada no Mosteiro de Bouças, localizado não muito longe do sítio do aparecimento da escultura. Até que...
Cinquenta anos depois, no ano 174, deambulando pela praia, uma pobre mulher recolhe lenha para alimentar a lareira. De regresso a casa observa, estupefacta, que um grande pedaço de madeira teimava em, milagrosamente, saltar do fogo sempre que para ele era lançado. Milagre reforçado pelo facto de ter sido uma jovem filha a indicar à mãe que a lenha em questão era o membro ausente na imagem do Senhor guardado no Mosteiro de Bouças. Facto que em si não encerraria nada de especial não fosse a circunstância da miúda ser surda-muda de nascença...
E, de facto, rapidamente aplicado no Crucifixo, de imediato se constatou estar em presença do braço até aí extraviado. E a união ao resto da escultura fez-se de tal forma que, desde aí, apesar de algumas versões da lenda indicarem tratar-se do esquerdo, nunca mais se conseguiu distinguir qual dos membros da imagem sofrera as vicissitudes narradas.
Começava desta forma a veneração desta imagem que, desde muito cedo, fez rumar a Bouças e, posteriormente, a Matosinhos, inúmeros peregrinos fascinados com a fama crescente dos seus milagres que, desde então, não deixaram de se multiplicar.
Reforçando o carácter miraculoso da imagem há algumas versões da lenda que afirmam que esta escultura além de ser um relíquia (pois foi concebida por uma das mais intervenientes testemunhas da Paixão e porque foi inspirada no Santo Sudário), é também um relicário, uma vez que Nicodemos teria escondido no seu interior (e as costas da escultura são efectivamente escavadas e côncavas) alguns dos instrumentos da Paixão (a tenaz, cravos, o martelo…). Outras versões acrescentam ainda a particularidade de afirmar que o braço em falta não se perdera no mar durante a sua “travessia”. Com efeito, quando o escultor a lançara às águas a imagem estava ainda incompleta e faltava-lhe esse membro superior. E foi já posteriormente, na cela onde terá sido preso, que Nicodemos esculpiu o braço em falta e, atirando-o para o mar através de uma pequena janela, lhe terá dado a “indicação” de se juntar ao resto da escultura.” (CLETO, 2007)

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